A lei municipal em questão poderá servir como relevante ferramenta de racionalização da prestação jurisdicional, desafogando a advocacia pública do Município de São Paulo e garantindo o tratamento adequado das controvérsias entre entes da Administração Pública ou entre esses e os particulares.
Enquanto as atenções do país permanecem voltadas ao enfrentamento da pandemia do novo coronavírus, o Município de São Paulo editou uma nova lei que traz importantes avanços quanto à resolução extrajudicial de controvérsias, visando garantir que os conflitos que envolvem o Poder Público Municipal sejam dirimidos de maneira mais adequada e eficiente. Trata-se da lei municipal 17.324/20, que “institui a Política de Desjudicialização no âmbito da Administração Pública Municipal Direta e Indireta”.
Em seu art. 1º, a lei declara como seus objetivos: (i) “reduzir a litigiosidade”; (ii) “estimular a solução adequada de controvérsias”; (iii) “promover, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”; e (iv) “aprimorar o gerenciamento do volume de demandas administrativas e judiciais”.
Firme nesses propósitos, há disposições que abarcam variados métodos de resolução de conflitos e seguem a diretriz geral estabelecida pelo art. 3º do CPC/15, segundo o qual “a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”.
Apesar de já existirem atos normativos pretéritos que regulam, de forma geral, a adoção de tais métodos pela Administração Pública (como as leis Federais 9.307/96 e 13.140/15, que tratam, respectivamente, da arbitragem e da mediação), o diploma municipal vem em boa hora. Garante, de fato, a adesão do Poder Público Municipal ao modelo denominado “multiportas”,1 pelo qual se propõe colocar à disposição da sociedade diversos meios para dirimir os seus conflitos, cada um deles com características mais apropriadas a cada tipo de disputa.
Prestigia-se, portanto, a adoção dos métodos adequados de resolução de litígios,2 que englobam todas as modalidades de solução de controvérsias não vinculadas de forma direta ao julgamento heterocompositivo3 pelo Poder Judiciário.
Realmente, a lei bem se insere na realidade de larga quantidade de demandas judiciais concentrada pelos Procuradores do Município e busca, nesse contexto, manter no Judiciário apenas aqueles conflitos que tratam de direitos indisponíveis que não admitem autocomposição, ou cuja resolução se dê de maneira preferencial pelo processo judicial (e não por outros métodos que pudessem ser menos custosos, mais céleres e mais efetivos).4
Nessa linha, deve-se registrar que a escolha do método apropriado deve passar – e não apenas no caso da Administração Pública – por inúmeros fatores relacionados ao caso concreto,5 como: (i) a capacidade das partes de suportarem despesas maiores ou menores; (ii) a necessidade de um procedimento mais célere; (iii) a confidencialidade ou, ao contrário, a publicidade da via eleita; (iv) a tentativa de manutenção de uma relação contratual prévia; (v) a flexibilidade do procedimento; (vi) a efetividade da solução encontrada;6 (vii) a disponibilidade do direito envolvido; (viii) a exigência de uma análise potencialmente mais técnica da matéria; e (ix) a preferência pelo julgamento de acordo com uma lei específica ou, até mesmo, pela equidade.
Exatamente por isso, de acordo com a nova lei, a coordenação da política de desjudicialização ficará a cargo da Procuradoria Geral do Município, que será responsável por ações como: (i) “avaliar a admissibilidade de pedidos de resolução de conflitos, por meio de composição, no caso de controvérsia entre particular e a Administração Pública Municipal Direta e Indireta”; (ii) “promover, no âmbito de sua competência e quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta nos casos submetidos a meios autocompositivos”; (iii) “fomentar a solução adequada de conflitos, no âmbito de seus órgãos de execução; (iv) disseminar a prática da negociação”; (v) “identificar e fomentar práticas que auxiliem na prevenção da litigiosidade”; e (vi) “identificar matérias elegíveis à solução consensual de controvérsias” (art. 2º).
Ademais, a lei 17.324/20, em seu capítulo II, elenca como “instrumentos para a solução adequada de controvérsias”: os acordos (seção I); a mediação e a arbitragem (seção II); e a transação tributária (seção III), que poderá ser feita por proposta individual ou por adesão (seção IV).
Quanto aos acordos, previu-se, em primeiro lugar, que a solução consensual dependerá de uma análise prévia de sua vantajosidade e viabilidade jurídica em processo administrativo, devendo-se observar os seguintes critérios: (i) “o conflito deve versar sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação”; (ii) “antiguidade do débito”; (iii) “garantia da isonomia para qualquer interessado em situação similar que pretenda solucionar o conflito consensualmente”; (iv) “edição de ato regulamentar das condições e parâmetros objetivos para celebração de acordos a respeito de determinada controvérsia quando for o caso”; (v) “capacidade contributiva”; e (vi) “qualidade da garantia” (art. 3º).
Acertou o legislador ao estabelecer diretrizes para a celebração de transações, uma vez que, sem parâmetros objetivos, há o risco de violação da isonomia no trato com os particulares, favorecendo-se a uns ou a outros. Ademais, diante da insegurança jurídica que muitas vezes permeia a função desempenhada por servidores públicos, a eleição de standards institucionais serve de fundamental estímulo para que as soluções consensuais sejam adotadas em maior escala, evitando-se o receio de futura responsabilidade pessoal de cada servidor.
De todo modo, muito embora os acordos de que trata a lei possam versar tanto sobre dívidas tributárias, como não tributárias, que devem ser quitadas em parcelas mensais e sucessivas, foi estipulada uma relevante restrição de valor: as composições apenas podem abarcar débitos limitados a R$ 510.000,00 (quinhentos e dez mil reais). No ponto, decidiu-se que quantias superiores a esse patamar não admitirão negociação, em função, provavelmente, do maior impacto para as finanças públicas.
De resto, como forma de evitar distorções em relação a vantagens já conferidas ao particular, o legislador declarou expressamente que a nova lei não se aplica aos acordos firmados em Programas de Parcelamento Incentivado anteriores à sua publicação, regidos por normativa própria.
A seguir, estabelece-se também que a transação tributária no âmbito do Município de São Paulo poderá se dar por meio das modalidades: (i) “proposta individual ou por adesão na cobrança da dívida ativa”; (ii) “adesão nos demais casos de contencioso judicial ou administrativo tributário”; e (iii) “adesão no contencioso administrativo tributário de baixo valor”. A lei também prevê requisitos que devem ser cumpridos para que a transação seja possível, bem como fatores que podem levar à sua rescisão.
Tem-se, nesse aspecto, salutar regulamentação do art. 171 do Código Tributário Nacional,7 que já previa, em caráter geral, a viabilidade da transação em matéria tributária, mas exigia concessões mútuas e, em especial, prévia edição de normas regulamentares. A lei preenche, assim, importante lacuna no ordenamento em relação à Municipalidade de São Paulo.
De outro giro, seguindo o norte da desjudicialização, a lei 17.324/2020 também prevê as possibilidades de a Administração Pública Municipal programar mutirões de conciliação, para reduzir o acúmulo de processos administrativos e judiciais, e de “ser autorizado o não ajuizamento de ações, o reconhecimento da procedência do pedido, a não interposição de recursos, o requerimento de extinção das ações em curso e a desistência dos recursos judiciais pendentes de julgamento”.
Já quanto à mediação (método autocompositivo) e à arbitragem (método heterocompositivo), o diploma municipal assinala que a Administração Pública Municipal Direta e Indireta “poderá prever cláusula de mediação nos contratos administrativos, convênios, parcerias, contratos de gestão e instrumentos congêneres”; e “poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis, nos termos da lei Federal 9.307, de 23 de setembro de 1996”.
Vale notar que, apesar de já haver, no ordenamento jurídico pátrio, previsão de que a Administração Pública poderia se valer da mediação e da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis (v., respectivamente, art. 32 e ss. da lei Federal 13.140/15 e art. 1º, § 1º, da lei Federal 9.307/96), a nova previsão reforça, no âmbito do Município de São Paulo, a importância dos referidos métodos.
Por fim, ressalta-se que, buscando estabelecer contornos ainda mais concretos para a implementação da política de desjudicialização, a lei ainda autoriza o Poder Executivo a criar, por decreto, “a Câmara de Prevenção e Resolução Administrativa de Conflitos no Município de São Paulo, vinculada à Procuradoria Geral do Município”, em pleno alinhamento com o que já dispunha, em âmbito nacional, o art. 32 da lei Federal 13.140/15.
Diante de todo esse apanhado geral, naturalmente resumido para o espaço deste breve artigo, o que se pode observar é que a lei municipal em questão poderá servir como relevante ferramenta de racionalização da prestação jurisdicional, desafogando a advocacia pública do Município de São Paulo e garantindo o tratamento adequado das controvérsias entre entes da Administração Pública ou entre esses e os particulares. É medida essencial para alçar o princípio constitucional do acesso à justiça a um nível mais elevado, redimensionando-o à luz do princípio da eficiência,8 que constitui, com efeito, um dos princípios que regem a administração pública, de acordo com o art. 37, caput, da CRFB.9
Espera-se, com isso, que a lei venha a consolidar esse importante movimento no âmbito da Administração Pública Municipal de São Paulo, de modo a se concretizar como um verdadeiro exemplo a ser seguido por outros entes federativos.
Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/323623/a-politica-de-desjudicializacao-no-municipio-de-sao-paulo–lei-17-324-20—um-importante-avanco