Ascensão e queda da PEC nº 300/16.
Tramitou no Congresso Nacional a polêmica Proposta de Emenda Constitucional n.º 300/16, que pretendeu promover relevantes alterações no art. 7º da Constituição de 1988: a) elevação da duração diária do trabalho a dez horas, b) revogação da proporcionalidade do aviso prévio (que estaria, então, limitado a trinta dias em qualquer caso), c) reconhecimento da prevalência do negociado em convenções e acordos coletivos sobre a legislação, d) submissão obrigatória de qualquer demanda trabalhista à Comissão de Conciliação Prévia (em uma curiosa hipótese de legislative override, uma vez que o Supremo Tribunal Federal decidiu, por ocasião do julgamento das ADI’s 2139, 2160 e 2237, que tal obrigatoriedade seria incompatível com o princípio constitucional da inafastabilidade do Judiciário), e)redução do prazo prescricional, que passaria a ser de dois anos, limitado a três meses após a extinção do contrato. De acordo com a proposta, o atual prazo quinquenal tornar-se-ia bienal, ao passo que o atual prazo bienal (após a cessação do vínculo) passaria a ser trimestral.
A aludida proposta foi apresentada na Câmara dos Deputados em 20/12/2016, permanecendo praticamente sem movimentações durante cerca de dois anos. Em 09/01/2019, a PEC recebeu parecer favorável da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.
A Proposta veio a ser arquivada em 31/01/2019, por decisão da Mesa Diretora da Câmara, sem, entretanto, realização de qualquer juízo de mérito em relação ao seu conteúdo. Isso porque o arquivamento decorreu meramente da aplicação do art. 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, de acordo com o qual “finda a legislatura, arquivar-se-ão todas as proposições que no seu decurso tenham sido submetidas à deliberação da Câmara e ainda se encontrem em tramitação”.
A tramitação da PEC na Câmara, especialmente diante da possibilidade de apresentação de projeto de conteúdo assemelhado com o reinício da atividade parlamentar em 2019, suscita uma questão: é possível reduzir o prazo de prescrição trabalhista previsto na Constituição Federal?
Para responder à indagação, convidamos o leitor a uma breve digressão histórica1 em torno da criação do atual prazo prescricional trabalhista consagrado no art. 7º, inciso XXIX, da CF/88 e a uma mirada sobre a regulamentação da matéria no Direito Comparado. Ao final, discutiremos os critérios adotados na PEC e a viabilidade (ou não) da redução do prazo prescricional sob o ponto de vista constitucional.
A criação dos atuais prazos prescricionais no Direito brasileiro
A prescrição consiste em ato-fato jurídico caducificante cujo suporte fático é composto pela inação do titular do direito em relação à pretensão exigível e pelo decurso do tempo fixado em lei2. Com a oposição da exceção (em sentido material) da prescrição ou, na atualidade, sua pronúncia ex officio, encobre-se a eficácia da pretensão3. Não há, entretanto, extinção do direito ou da ação processual.
A inclusão do prazo de prescrição trabalhista no corpo da Constituição não integra a tradição legislativa brasileira — assim como não corresponde, aliás, à tradição ocidental, tratando-se de matéria tipicamente infraconstitucional. Por isso, a Carta de 1988 foi a primeira no Brasil a alçar o tema ao status constitucional.
Em sua redação original, a Consolidação das Leis do Trabalho, acompanhando a diretriz fixada no Decreto-Lei n.º 1.237/39 e no Decreto n.º 6.596/40 (Regulamento da Justiça do Trabalho), previa somente o prazo prescricional de dois anos, contados da ocorrência da lesão (arts. 11, 119 e 143).
Na última metade da década de 1980, no contexto de redemocratização do País e de elaboração de uma nova Constituição, a ideia de inclusão da disciplina acerca do prazo prescricional trabalhista em seu texto foi objeto de acirrada discussão.
No Anteprojeto de Constituição concebido pela Comissão Afonso Arinos, constava expressamente, em seu art. 343, a impossibilidade de fluência do prazo prescricional durante a vigência da relação de emprego.
A partir do estudo dos textos votados pelos parlamentares na Assembleia Constituinte, é possível observar que, inicialmente, não houve a criação de qualquer dispositivo sobre a matéria, o que perdurou inclusive até a elaboração do Substitutivo 1 e do Substitutivo 2. Apenas na fase posterior à apresentação deste é que o tema passou a constar nas minutas da nova Lei Maior.
Os debates na Constituinte foram riquíssimos, com a apresentação de emendas que acolhiam diferentes visões sobre a prescrição trabalhista, das quais é possível destacar as seguintes: a) prescrição de dez anos no curso do contrato e de dois anos após sua extinção, observando-se sempre a prescrição parcial (ex.: Emenda 28.159); b) vedação à fluência da prescrição durante o contrato de emprego, sendo seu prazo de dois anos após o término do vínculo (ex.: Emendas 28.835, 31.885, 22.956, 32.976, 10.010, 18.356, 19.368, 1.388, 22.727, 29.631, 14.946, 7.238, 4.640, 158, 17.435, 257); c) vedação à fluência da prescrição durante o contrato de emprego, sendo seu prazo de um ano após o término do vínculo (Emenda 10.042); d) prescrição quinquenal em relação a trabalhadores urbanos e, quanto aos rurais, prescrição de dois anos, contados apenas após a cessação da relação (ex.: Emenda 1.888); e) prescrição bienal no curso do contrato e após sua extinção, acolhendo-se o parâmetro consagrado na CLT (ex.: Emendas 236 e 26); f) prazo geral de prescrição trabalhista trienal (ex.: Emenda 602); g) prazo quinquenal no curso do contrato, contado da lesão ao direito, e bienal após seu término (ex.: Emenda 646); h) prescrição de cinco anos para o trabalhador urbano, até o limite de dois anos após a extinção do contrato, sendo, quanto ao rural, de até dois anos após a extinção do contrato (Emenda 1.755); i) impossibilidade de regulação do tema da prescrição no texto da nova Constituição, por tratar-se de matéria tipicamente afeta à legislação infraconstitucional (vide, por exemplo, os pareceres pela rejeição das Emendas 28.159, 28.835 e 31.885).
Prevaleceu, ao final, a seguinte redação do art. 7º, inciso XXIX, da Constituição de 1988: “XXIX – ação, quanto a créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de: a) cinco anos para o trabalhador urbano, até o limite de dois anos após a extinção do contrato; b) até dois anos após a extinção do contrato, para o trabalhador rural”.
O dispositivo que veiculou a ampliação do prazo em favor dos trabalhadores urbanos não gozava de efeitos retroativos, não afetando a prescrição bienal já consumada à época da promulgação da nova Lei Maior. A fim de sanar dúvidas sobre o tema, houve por bem o Tribunal Superior do Trabalho editar, em 1992, a Súmula n.º 308, pacificando tal entendimento.
Ademais, de maneira didática, a SDI-I da Corte consolidou, em sua Orientação Jurisprudencial n.º 204, a diretriz de contagem retroativa do prazo prescricional quinquenal a partir da data da propositura da reclamação, de modo que todas as pretensões cujo termo inicial situe-se nesse período estão a salvo da prescrição, desde que observado o biênio posterior ao término do contrato para o ajuizamento. O enunciado viria a ser, em 2005, incorporado à Súmula n.º 308.
Em maio de 2000, foi promulgada a Emenda Constitucional n.º 28, que, em enorme prejuízo aos trabalhadores rurais, unificou a prescrição de empregados urbanos e rurais, conferindo nova redação ao art. 7º, inciso XXIX, da CF/88, que permanece vigente até a atualidade: “XXIX – ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho”.
A PEC n.º 300/16 pretendeu promover nova alteração no citado dispositivo, que passaria a contar com a seguinte redação: “XXIX – ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, obrigatoriamente submetida à Comissão de Conciliação Prévia, prevista em lei, com prazo prescricional de dois anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de três meses após a extinção do contrato de trabalho”.
Exposto, ainda que brevemente, o contexto histórico de concepção do atual prazo de prescrição trabalhista, cumpre-nos conhecer algumas experiências estrangeiras no desenvolvimento da matéria.
A prescrição trabalhista no Direito Comparado
Consoante assinalado anteriormente, a previsão do prazo prescricional trabalhista no texto constitucional não integra a tradição ocidental. Em regra, a matéria é disciplinada na legislação infraconstitucional. Uma das raras exceções residia na Constituição peruana de 1979 (revogada pelo texto de 1993, atualmente vigente), que previa o prazo de quinze anos para cobrança dos créditos decorrentes da relação de emprego.
Conhecer o tratamento jurídico conferido à questão em outros ordenamentos oferece elementos para compreensão, com maturidade e senso crítico, do nosso próprio cenário nacional. Naturalmente, um juízo comparativo mais aprofundado exigiria a consideração das peculiaridades jurídicas de cada país, especialmente no tocante aos regimes de garantia de emprego e às técnicas processuais para sua efetivação, o que ultrapassa os limites propostos para o presente texto.
Para a tarefa de comparação, selecionamos três grupos de países: a) integrantes do Mercosul, dada a evidente vinculação social e econômica com o Brasil; b) nações da América Latina com mais elevados Produtos Internos Brutos, de acordo com dados de 2017, excetuado o próprio Brasil, evidentemente; c) países europeus cuja cultura jurídico-trabalhista influenciou (e continua a influenciar) de maneira mais intensa a realidade normativa brasileira.
No primeiro grupo, encontramos a Argentina, o Uruguai, o Paraguai e a Venezuela. Vale recordar que esta última encontra-se suspensa de todos os direitos e obrigações inerentes à sua condição de Estado Parte do Mercosul, com fundamento no Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático.
Na Argentina, a Lei n.º 20.744/76 prevê o prazo de prescrição trabalhista de dois anos (art. 256), inclusive em relação à responsabilidade civil por acidente de trabalho ou doença ocupacional, contados da determinação da incapacidade ou do falecimento da vítima (art. 258).
À semelhança do Brasil, o Uruguai também adota um sistema bipartido de prazos: a Lei n.º 18.091/07 consagra o prazo de cinco anos (art. 2º), observando-se, entretanto, a limitação ao prazo de um ano após a cessação da relação de emprego para o exercício da pretensão (art. 1º).
No Paraguai, o Código do Trabalho (Lei n.º 203/93) prevê o prazo geral de um ano para a prescrição trabalhista (art. 399), além de algumas situações específicas nas quais o prazo para ajuizamento da respectiva ação é de seis meses (art. 400): nulidade de um contrato celebrado por erro ou coação, desconstituição de contrato por motivos previstos em lei ou postulação de indenização por despedida injustificada.
A seu turno, na Venezuela, a Lei Orgânica do Trabalho, dos Trabalhadores e das Trabalhadoras (Decreto n.º 8.938/12) consagra a regra geral do prazo prescricional de cinco anos, computados da extinção do contrato de emprego (art. 51). Não há fluência da prescrição, portanto, no curso do vínculo empregatício.
No segundo grupo de países, encontramos México, Colômbia e Chile. Os cenários legislativos da Argentina e da Venezuela, cujo enquadramento, em 2017, também seria possível neste segundo grupo, já foram abordados acima. Está também excluído, obviamente, o próprio Brasil.
A Lei Federal do Trabalho, no México, prevê, como regra geral, o prazo prescricional de um ano, contado a partir da exigibilidade do crédito (art. 516). São, todavia, estabelecidos prazos específicos, com maior ou menor extensão, para o manejo de determinadas ações: a) dois anos para postular o pagamento de indenizações por acidentes de trabalho ou doenças ocupacionais, bem como para exigir o cumprimento de decisões das “Juntas de Conciliación y Arbitraje” e das convenções celebradas perante elas (art. 519); b) dois meses para pleitear reintegração ou indenização por trabalhadores despedidos (art. 518); c) um mês para o empregador promover a despedida do funcionário, aplicar-lhe sanção por infração contratual ou realizar desconto em seu salário, bem como para o trabalhador postular o equivalente à rescisão indireta do contrato (art. 517).
Na Colômbia, o Código do Trabalho estabelece o prazo prescricional trabalhista geral de três anos (art. 488). No mesmo sentido é a previsão contida no Código Processual do Trabalho e da Seguridade Social (art. 151).
Também acolhendo, aos moldes brasileiros, um sistema bipartido de contagem do prazo prescricional, o Código do Trabalho do Chile prevê, em seu art. 510, o prazo de dois anos, contados da exigibilidade da pretensão, observando-se o limite de seis meses após o término do contrato de emprego. O mesmo dispositivo legal estipula o prazo prescricional específico de seis meses para a cobrança de horas extraordinárias, contados da data em que deveria ter sido realizado seu pagamento, bem como para o manejo de ação em que se postule a nulidade da despedida, computados aqui a partir do encerramento da prestação dos serviços.
No terceiro grupo de países, visualizamos Portugal, Espanha e Itália, sem prejuízo, naturalmente, do reconhecimento da influência exercida sobre o Brasil pela experiência desenvolvida em outros ordenamentos estrangeiros.
O Código do Trabalho de Portugal prevê apenas o prazo prescricional de um ano, contado a partir do término do contrato (art. 337), não correndo a prescrição durante a vigência do vínculo empregatício.
O item 1 do art. 59 do Estatuto dos Trabalhadores da Espanha sugere a adoção da mesma diretriz como regra geral, isto é, prazo prescricional trabalhista de um ano, iniciado somente a partir da cessação do vínculo. Trata-se, no entanto, de mera aparência, uma vez que a cláusula de exceção contida no item 2 do mesmo dispositivo revela-se tão ampla a ponto de alcançar inúmeras hipóteses no cotidiano laboral. Com efeito, de acordo com este item, o prazo prescricional será de um ano, a contar da data da exigibilidade do crédito, para cobrança de prestações econômicas ou para cumprimento de obrigações consistentes em ato único do empregador. Na prática, portanto, de modo geral, o prazo prescricional corresponde a um ano, iniciando-se não com a extinção do contrato, mas da data em que se torna possível a cobrança do crédito.
Os itens 3 e 4 do mesmo artigo consagram o prazo de vinte dias para manejo de ação destinada à impugnação de despedida ou resolução de contrato temporário, bem como determinação empresarial de alteração contratual substancial.
Na Itália, o prazo prescricional trabalhista encontra-se previsto no Código Civil, sendo de cinco anos para créditos de prestação periódica e daqueles decorrentes da extinção contratual (art. 2.948, itens 4 e 5), sendo aplicável o prazo ordinário de dez anos para as pretensões em relação às quais não esteja previsto prazo específico (art. 2.946). O diploma prevê, ainda, hipóteses de prazos prescricionais de um ano ou três anos, de acordo com a exigibilidade de verbas em períodos de até um mês (art. 2.955, 2) ou superior a esse patamar (art. 2.956, 1).
A questão do termo inicial do prazo de prescrição trabalhista no ordenamento italiano merece especial atenção. Isso porque a Corte Constitucional daquele país, considerando que a dependência do emprego para subsistência própria e da família tende a inviabilizar o ajuizamento de ação pelo trabalhador em face do seu patrão (haveria, aqui, de acordo com o Tribunal, um obstáculo material ao exercício do direito de ação) e a irrenunciabilidade do salário (extraída do art. 36 da Constituição italiana), assentou, na Sentença n.º 63/19664, que as regras que estabelecem a prescrição em relação a prestações trabalhistas são constitucionais, mas o termo inicial do respectivo prazo somente poderá deflagrar-se com a extinção do contrato, sob pena de configuração de renúncia de direitos pelo trabalhador. Trata-se, inequivocamente, de decisão inspirada na teoria contra non valentem agere non currit praescriptio5.
Anos depois, na Sentença n.º 174/1972, a Corte Constitucional restringiu a extensão dos beneficiários do entendimento anteriormente fixado, limitando-a àqueles trabalhadores não alcançados pela garantia contra despedidas prevista na Lei n.º 604/1966 e no Estatuto dos Trabalhadores, pois apenas eles estariam submetidos ao obstáculo material à propositura de ação anteriormente mencionado. Em relação aos empregados que contam com a garantia contra a despedida, o prazo prescricional flui normalmente na constância do contrato.
Como se nota, a prescrição trabalhista possui regramento bastante diversificado nos países analisados.
Em alguns deles, veda-se a própria fluência do prazo durante a relação de emprego, a exemplo de Portugal, da Espanha (com as inúmeras exceções albergadas pelo Estatuto dos Trabalhadores), da Itália (por construção da Corte Constitucional) e da Venezuela, sendo oportuno recordar que, ao menos em relação aos trabalhadores rurais, era essa a regra vigente no Brasil até o advento da Emenda Constitucional n.º 28/00.
Adotam um sistema de “bipartição” dos prazos prescricionais, com a fixação específica de um prazo fatal após a cessação do liame empregatício, além do Brasil, o Uruguai e o Chile.
De modo geral, os prazos variam de um ano (Paraguai e Espanha, por exemplo) a cinco anos (Itália, Uruguai e Venezuela), podendo, excepcionalmente, chegar a dez anos no ordenamento italiano. No caso chileno, chama a atenção o curto prazo específico de seis meses para cobrança do pagamento pela prestação de horas extraordinárias.
Analisando com vagar alguns dos prazos mais exíguos expostos anteriormente, é facilmente constatável que, embora denominados de prescricionais nas respectivas legislações6, referem-se, em verdade, ao exercício de ações desconstitutivas (ou constitutivas negativas), fundadas no manejo de um direito potestativo, possuindo, portanto, em verdade, natureza decadencial7. Não surpreende, assim, dado o elevado grau de interferência sobre a esfera jurídica de terceiros, que os prazos sejam mais curtos8.
A partir do exame dos quadros legislativos verificados em outras nações, é perceptível que o constituinte brasileiro de 1988 engenhosamente concebeu uma interessante solução para a questão da prescrição trabalhista: não assegurou a imprescritibilidade das pretensões no curso do contrato de emprego (ressalvada a situação do empregado rural, que viria a ser modificada doze anos depois, uniformizando-se os prazos prescricionais), mas estabeleceu o considerável prazo de cinco anos, sem dúvida levando em conta que dificilmente o trabalhador ajuíza a reclamação durante a vigência da relação empregatícia. Manteve, porém, o prazo fatal de dois anos após a extinção contratual (já previsto na CLT e na Lei do Rural), ponderando que tal duração corresponderia a um ponto de equilíbrio entre a incerteza do patrão quanto à possibilidade de ser demandado e um período razoável para o trabalhador buscar direitos que entende indevidamente negados.
A PEC n.º 300/16 objetivou alterar esse cenário, conforme já relatamos, estabelecendo no Brasil o menor prazo geral de prescrição após a cessação contratual em comparação com os países do Mercosul, com aqueles com os mais elevados PIB’s da América Latina e com Portugal, Espanha e Itália, países europeus que influenciaram (e influenciam) decisivamente o Direito do Trabalho pátrio. Cumpre-nos agora analisá-la de maneira específica.
É possível reduzir os prazos da prescrição trabalhista?
A PEC n.º 300/16 pretendeu modificar a redação do inciso XXIX do art. 7º da CF/88, que passaria a ser a seguinte: “ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, obrigatoriamente submetida à Comissão de Conciliação Prévia, prevista em lei, com prazo prescricional de dois anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de três meses após a extinção do contrato de trabalho”.
Convém rememorar que o arquivamento da Proposta consistiu em mera consequência da aplicação do procedimento previsto no art. 105 do Regimento Interno da Câmara, não da conclusão quanto à inadequação do seu conteúdo. Em verdade, sob a ótica substancial, a PEC havia recebido a chancela da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania poucos dias antes do arquivamento.
Não se deve descartar, portanto, o horizonte de oferecimento, em breve, de nova Proposta sobre o tema, dotada de conteúdo assemelhado.
Na justificativa da Proposta9, dois fundamentos foram apresentados para a alteração constitucional pretendida, conforme trecho adiante transcrito: “Nos termos da atual disposição constitucional, o trabalhador tem o prazo de até dois anos, após o término do contrato de trabalho, para ingressar com ação judicial que verse sobre a reparação de direitos que entende lesados. Esse prazo, todavia, é demasiadamente longo e, por isso, nocivo ao empresariado e à sociedade em geral, pois a dificuldade de manter-se arquivo documental relativo à relação empregatícia extinta e a complicada situação de localizarem-se testemunhas contemporâneas aos fatos objeto do litígio inviabilizam a defesa judicial do empregador reclamado”. Assim, a dificuldade para a guarda de documentos e para convidar testemunhas seriam as razões para a mudança proposta.
Na leitura da justificativa da PEC, é inevitável a percepção de que se trata de uma alteração com o declarado objetivo de melhoria da condição social dos empregadores, desafiando a lógica das modificações legislativas em matéria trabalhista imposta pelo caput do art. 7º da Carta de 1988.
Superada a perplexidade da primeira impressão, uma reflexão mais detida sobre os motivos expostos na Proposta evidencia que, concessa maxima venia, eles não se sustentam.
Se a preocupação do legislador recai sobre as dificuldades para o arquivamento de documentos, talvez o mais eficiente fosse a promoção de uma grande revisão dos prazos prescricionais brasileiros, já que a legislação trabalhista responde apenas por pequena parte do “problema”.
Com efeito, é possível, de maneira simplificada, reunir as principais relações jurídicas mantidas pelas empresas em quatro grupos: a) com fornecedores e parceiros comerciais em geral; b) com a Fazenda Pública (nas esferas federal, estadual e municipal); c) com consumidores; d) com seus empregados.
Tanto no caso das obrigações perante a Fazenda Pública quanto em relação àquelas contraídas quanto aos consumidores, o prazo prescricional aplicável é de cinco anos, conforme disciplinam, respectivamente, o art. 174 do Código Tributário Nacional e o art. 27 do Código de Defesa do Consumidor.
No tocante aos contratos firmados com fornecedores e parceiros comerciais em geral, é relevante recordar que o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do EREsp 1.280.825 sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi, firmou a tese jurídica de acordo com a qual “nas controvérsias relacionadas à responsabilidade contratual, aplica-se a regra geral (art. 205 CC/02) que prevê dez anos de prazo prescricional”10. Isto é, as pretensões decorrentes de inadimplemento contratual no Direito Comum prescrevem em dez anos, incidindo o disposto no art. 205 do Código Civil.
Logo, em comparação às demais relações jurídicas ordinariamente mantidas pelas empresas, nada há de exótico no prazo constitucional da prescrição trabalhista, especialmente considerando-se que, decorridos dois anos após a cessação do vínculo, nenhuma pretensão poderá ser exercitada (ressalvados, obviamente, os casos de lesão pós-contratual).
Destaque-se, ainda, que o menor prazo prescricional previsto no rol do art. 206 do Código Civil é de um ano, ao passo que a PEC em análise pretendeu reduzir o prazo de prescrição após a extinção contratual para apenas três meses. O cotejo com um exemplo extraído do referido dispositivo auxilia a adequadamente compreender a desproporcionalidade da Proposta: a prevalecer a alteração prevista na PEC, o prazo prescricional aplicável ao trabalhador cujo contrato foi encerrado corresponderá a 1/4 do prazo prescricional previsto quanto à pretensão dos credores não pagos contra os sócios ou acionistas e os liquidantes, quando do encerramento da liquidação da sociedade, em um típico caso de antinomia imprópria valorativa.
Por isso, se, em momento futuro, vier a ser aprovada uma nova redação do art. 7º, inciso XXIX, da CF/88, com a fixação do prazo prescricional após a extinção do vínculo em apenas três meses, certamente uma das preocupações daqueles que militam cotidianamente com o Direito do Trabalho será tentar oferecer uma explicação plausível para a escolha do prazo.
É digno de nota o fato de a PEC n.º 300/16 não ter sido acompanhada por qualquer estudo técnico que justificasse a definição do aludido prazo. Por que três meses? Por que não seis, doze, dezoito ou trinta meses? Qual critério científico, qual fundamento sistemático, qual estudo empírico lastreia a consagração exatamente do prazo de três meses?
O segundo motivo apresentado como justificador da Proposta consiste na “complicada situação de localizarem-se testemunhas contemporâneas aos fatos objeto do litígio inviabilizam a defesa judicial do empregador reclamado”.
Partindo da premissa de que qualquer setor de Recursos Humanos minimamente organizado possui a relação dos antigos empregados e que é plenamente possível a consulta aos dados informados pela própria empresa na RAIS ao longo dos anos, é realmente difícil visualizar a “complicada situação” referida na justificativa mesmo quanto a ex-funcionários sem contato com a empresa e que eventualmente tenham alterado seu endereço (além do número de telefone celular, endereço de e-mail e perfis de redes sociais, facilmente acessíveis na atualidade…), uma vez que o ex-empregador poderá informar os dados de identificação do trabalhador ao Judiciário e, explicitando suas dificuldades, requerer a utilização por este de ferramentas (a exemplo do sistema INFOJUD) que permitam o conhecimento do seu endereço, solicitando, se for o caso, sua intimação judicial (CPC/15, art. 455, §4º, inciso II).
À fragilidade das justificativas da PEC n.º 300/16 aliava-se o claro traço da inconstitucionalidade.
A drástica redução dos prazos prescricionais colide frontalmente com a determinação contida no caput do art. 7º da CF/88 quanto à melhoria da condição social dos trabalhadores, em descompasso, pois, com a vedação ao retrocesso social. Em momento algum da história do Direito do Trabalho brasileiro conheceu-se tão exíguo prazo prescricional.
Ao consagrar o prazo prescricional na Lei Maior, o constituinte decidiu inequivocamente por uma proteção qualificada do acesso à Justiça em âmbito trabalhista, tornando-o imune a investidas de maiorias parlamentares eventuais que propugnem pela redução da sua extensão.
É bem verdade, porém, em desfavor dessa tese, que o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior do Trabalho, reconhecendo larguíssima margem de discricionariedade em matéria de prescrição ao constituinte reformador, têm convivido harmoniosamente com a Emenda Constitucional n.º 28/00, que unificou os prazos prescricionais de trabalhadores urbanos e rurais, extinguindo o regime de não fluência da prescrição no curso do contrato que existia em favor destes11.
Paralelamente, não se deve olvidar que, conquanto a prescrição trate-se de instituto de Direito Material, é inegável sua vinculação à efetiva realização do direito fundamental de acesso à Justiça, consoante já destacado. Prazos excessivamente curtos podem até atender, sob perspectiva formal, tal direito, uma vez que o cidadão disporá de alguma possibilidade de provocação do Poder Judiciário, mas definitivamente não concretizam, sob ótica substancial, o direito fundamental. O cenário torna-se ainda mais delicado diante da exigência estabelecida como regra geral pela Lei n.º 13.467/17 quanto à indicação do valor dos pedidos, ainda que por estimativa (Instrução Normativa n.º 41/18, art. 12, §2º, do TST), em razão do tempo necessário para apuração pelo Advogado trabalhista da dimensão dos créditos que entende devidos ao seu cliente.
De fato, especialmente em relação ao prazo trimestral, sua exiguidade é flagrante, seja em confronto com outros prazos no ordenamento pátrio (correspondendo a apenas 1/4 do menor prazo previsto no art. 206 do CC/02), seja em cotejo com a realidade normativa relativa à prescrição trabalhista em outros países.
Acerca da atuação estatal (inclusive legislativa) em extensão inferior à necessária para proteção de um direito fundamental, lecionam Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero: “Por outro lado, poderá o Estado frustrar seus deveres de proteção atuando de modo insuficiente, isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos ou mesmo deixando de atuar – hipótese, por sua vez, vinculada (ao menos em boa parte) à problemática das omissões inconstitucionais. É neste sentido que – como contraponto à assim designada proibição de excesso – expressiva doutrina e inclusive jurisprudência tem admitido a existência daquilo que se convencionou chamar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado e como tradução livre do alemão Untermassverbot). É por tal razão que também a doutrina brasileira (e, em alguns casos, a própria jurisprudência), em que pese não ser pequena a discussão a respeito, em geral já aceita a ideia de que o princípio da proporcionalidade possui como que uma dupla face, atuando simultaneamente como critério para o controle da legitimidade constitucional de medidas restritivas do âmbito de proteção de direitos fundamentais, bem como para o controle da omissão ou atuação insuficiente do Estado no cumprimento dos seus deveres de proteção. Em suma, desproporções – para mais ou para menos – caracterizam violações o princípio em apreço e, portanto, antijuridicidade, no sentido de uma inconstitucionalidade da ação estatal”12.
Logo, ainda que se venha a admitir, à luz da jurisprudência do STF e do TST, a possibilidade de redução do prazo prescricional trabalhista consagrado na Constituição (a exemplo do ocorrido em relação aos empregados rurais), a diminuição jamais poderá ser implementada de maneira desproporcional, tornando ínfimo o prazo, a ponto de inviabilizar o efetivo acesso à Justiça.
Assim, em nossa visão, a redução do prazo prescricional em termos como os propugnados pela Proposta de Emenda Constitucional n.º 300/16 encontra insuperáveis obstáculos no princípio da vedação ao retrocesso social e na proporcionalidade, na vertente da vedação à proteção insuficiente.
Por esses motivos, parece-nos que Propostas assemelhadas sequer poderiam ser objeto de deliberação no Congresso Nacional, considerando a proibição contida no art. 60, §4º, inciso IV, da Constituição Federal de 1988. Ao largo da controvérsia quanto à abrangência ou não dos direitos sociais pela expressão “direitos e garantias individuais”, é inequívoco que o acesso à Justiça erige-se como direito individual (dotado, a propósito, de especial caráter fundamental, já que se afirma como pressuposto à garantia e à fruição de inúmeros outros direitos no Estado Democrático).
À guisa de conclusão
A Proposta de Emenda Constitucional n.º 300/16 pretendeu alterar substancialmente os prazos da prescrição trabalhista. Seu arquivamento, após parecer favorável da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, decorreu de mero procedimento formal previsto no art. 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, de modo que não se deve descartar o horizonte de oferecimento, em breve, de nova Proposta sobre o tema, dotada de conteúdo assemelhado.
A eventual aprovação futura de projeto nos termos cogitados na PEC n.º 300/16 significaria, a um só tempo:
a) enorme retrocesso social, em evidente violação do caput do art. 7º da CF/88, com a adoção do menor prazo de prescrição trabalhista da história brasileira, correspondendo o prazo trimestral proposto a somente 1/4 do menor prazo prescricional previsto no art. 206 do Código Civil;
b) a criação no Brasil do menor prazo geral de prescrição após a cessação contratual em comparação com os países do Mercosul, com aqueles com os mais elevados PIB’s da América Latina e com Portugal, Espanha e Itália, países europeus que influenciaram (e influenciam) decisivamente o Direito do Trabalho pátrio;
c) restrição excessiva ao acesso à Justiça, especialmente em relação ao momento posterior à cessação do vínculo empregatício, em colisão com a vedação à proteção insuficiente, desdobramento da proporcionalidade.
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1 Para aprofundamento na análise histórica da prescrição trabalhista na realidade normativa brasileira, vide FERNANDEZ, Leandro; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Tratado da Prescrição Trabalhista: Aspectos Teóricos e Práticos. São Paulo: LTr, 2017.
2 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado: Parte Geral. Tomo VI. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, § 665, 1 e 3.
3 Ibidem, § 695, 6.
4 O conteúdo da decisão pode ser acessado em <https://www.cortecostituzionale.it/actionPronuncia.do>.
5 Sobre o tema, vide: PAMPLONA FILHO, Rodolfo; FERNANDEZ, Leandro. Prescrição Trabalhista e a Teoria Contra Non Valentem Agere Non Currit Praescriptio. RJLB – REVISTA JURÍDICA LUSO-BRASILEIRA, v. 4, p. 1255-1278, 2018.
6 A dificuldade em relação à identificação da prescrição e da decadência pelo legislador em variados ordenamentos jurídicos foi apontada por precisão por Miguel Reale no conhecido opúsculo “Visão Geral do Projeto de Código Civil”, disponível em: http://www.miguelreale.com.br/artigos/vgpcc.htm.
7 Acerca da distinção entre os institutos da prescrição e da decadência, recomendamos fortemente ao amigo leitor a leitura de paradigmático trabalho: AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis in MENDES, Gilmar Ferreira; STOCO, Rui (Org.). Coleção doutrinas essenciais: Direito Civil, Parte Geral. v. 5. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
8 Pondera Agnelo Amorim Filho acerca da gravidade da afetação da esfera jurídica de outras pessoas em razão do exercício de direitos potestativos: “As considerações feitas acima levam, inevitavelmente, à conclusão de que, quando a lei, visando à paz social, entende de fixar prazos para o exercício de alguns direitos potestativos (seja exercício por meio de simples declaração de vontade, como o direito de preempção ou preferência; seja exercício por meio de ação, como o direito de promover a anulação do casamento), o decurso do prazo sem o exercício do direito implica na extinção deste, pois, a não ser assim, não haveria razão para a fixação do prazo. Tal consequência (a extinção do direito) tem uma explicação perfeitamente lógica: É que (ao contrário do que ocorre com os direitos suscetíveis de lesão) nos direitos potestativos subordinados a prazo o que causa intranquilidade social não é, propriamente, a existência da pretensão (pois deles não se irradiam pretensões) nem a existência da ação, mas a existência do direito, tanto que há direitos desta classe ligados a prazo, embora não sejam exercitáveis por meio de ação. O que intranquiliza não é a possibilidade de ser exercitada a pretensão ou proposta a ação, mas a possibilidade de ser exercido o direito. Assim, tolher a eficácia da ação, e deixar o direito sobreviver (como ocorre na prescrição), de nada adiantaria, pois a situação de intranquilidade continuaria de pé” (Ibidem, p. 42/43).
9 Disponível em <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2121866>.
10 EREsp 1280825/RJ, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado em 27/06/2018, DJe 02/08/2018.
11 Vide, a propósito, as Orientações Jurisprudenciais n.º 271 e 417 da SDI-I do TST, bem como a decisão proferida no RE 570532, em que o STF posicionou-se pela ausência de repercussão geral da questão concernente à aplicabilidade da nova regra prevista na EC n.º 28/00 ao contrato firmado antes da sua promulgação, mas extinto apenas após seu advento.
12 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 349/350.
Fonte: JOTA, por Leandro Fernandez, Juiz do Trabalho do TRT, da 6ª Região, 07.02.2019